Um diálogo de Pedro Calapez e Nuno Faria em torno do conceito de livro de desenho.
É longa e profícua a tradição de colaboração entre artistas e escritores ou teóricos, para usar, simplificando, termos que designam mas que não caracterizam fielmente a contribuição de cada uma das partes envolvidas nessa relação. Essa colaboração tem ponto de encontro no interior do objecto-livro, território que, por ser mais familiar ao escritor que ao artista, equilibra a relação de forças entre a imagem e a palavra, cujo ascendente pende naturalmente para a primeira.
Foi, nesta colaboração, nosso desígnio indistinguir essa relação hierárquica e disciplinar. Se, por um lado, o livro não é meramente uma superfície em que o artista inscreve o seu fazer, como se esse fosse um suporte como os outros por ele usados, por outro lado, também o escritor não pode senão inscrever-se na tradição do acaso mallarmeniano. Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. Indistinguir, igualmente, o estatuto retiniano associado à percepção da imagem e da palavra. Não é novidade, precisamente depois de Mallarmé o sabemos, que a imagem tem de verbal como a palavra tem de visual.
Como metodologia de trabalho, havia, em primeiro lugar, que considerar a questão do livro enquanto objecto e, em segundo lugar, a questão do desenho enquanto território comum de pesquisa. Se partirmos do pressuposto que o desenho está mais próximo da linguagem que, por exemplo a pintura – ainda que essa linguagem se possa declinar como afasia, gaguez ou dislexia -, podemos então postular que ele se declina menos como imagem do que como potência, possibilidade.
Tomando, assim, o desenho como campo de imanência, como ferramenta conceptual, todo um conjunto de categorias serve de roteiro, como se de notas de navegação se tratassem, a quem quiser partilhar a experiência em que se constitui este livro.
Mais ou menos explícitas, elas declinam modos de pensar e de fazer, modos de conceber e de receber. Migração e hospitalidade, pois, enquanto possibilidades de colaboração, lembrando que trabalhamos em zona de fronteira, entre duas páginas, entre dois fazeres.
Transparência é assim um mote apropriado. Através da transparência que é aqui sugerida pelo papel vegetal, ensaiar a possibilidade da palavra no abismo das imagens.
É, pois, um livro que se vai fazendo, construindo-se sobre si próprio. Aqui, os desenhos (resultantes de uma grafia muito particular), surgem no lugar do texto e as palavras surgem, por vezes sob aparência de imagens, outras usando as figuras do próprio livro (legendas, exergues, notas de rodapé, etc.), nos interstícios dos desenhos.
Trata-se, na acepção mais pura, precisa e lata da palavra, de um livro de desenho.